Consciência coletiva enquanto mulheres
Consideramos que as mulheres partilham uma opressão em comum cuja base é o sexo. Reconhecemos que esta opressão foi estruturada de maneiras distintas entre as mulheres, dividindo-nos através de hierarquias de raça e de classe que moldam as nossas experiências de vida em diferentes sociedades, com o objetivo de organizar a reprodução social e o trabalho sob o signo do patriarcado (adaptado ao modelo vigente de produção social).
Embora justificada numa característica biológica, denunciamos a opressão como fundamentalmente política, social e material – nunca inata ou natural. Visamos um movimento que reconheça as diferentes experiências das mulheres na sociedade e que opere a partir da consciencialização para desafiar a estrutura de dominação masculina que nos oprime a todas nos seus mais diversos moldes.
Os papéis de género são sempre opressivos e têm de ser abolidos
O género é um sistema de dominação que dita papéis sociais, comportamentos, gostos, e impõe relações de poder em função da biologia sexual. Ao contrário daquilo que é promovido pelo discurso hegemónico, o género não faz uma leitura neutra da diferença sexual. Os papéis de género são inerentemente negativos e opressivos, pois fecham os seres humanos, e em particular as mulheres, em caixas pré-determinadas do que é/não é, pode/não pode ser o “masculino” e o “feminino”, pelo que devem ser abolidos.
Por outro lado, assistimos hoje nas nossas sociedades a uma reconfiguração do discurso do género que, sob a capa do progressismo, perpetua estereótipos de género que diminuem as mulheres e regressam a um essencialismo violento. Reconhecemos, ademais, que a construção da categoria de género é também historicamente localizada e que ela se associa à raça e à classe (uma mulher negra ou uma mulher operária, bem como as mulheres racializadas na história do ocidente, não encaixavam, obviamente, nos padrões de pureza e fragilidade femininas idealizados pela nobreza e/ou pela burguesia), e que essas interseções devem ser consideradas na abolição do sistema de género.
Reconhecemos, no entanto, o quão difícil é para a maioria de nós abandonar completamente os estereótipos de género e vemos esta questão como um verdadeiro desafio para as mulheres e para o movimento feminista em geral.
Abolicionismo e recusa da mercantilização dos nossos corpos
Recusamos toda a mercantilização do corpo das mulheres e a nossa subsequente desumanização. Não somos mercadorias e, como seres humanos, não podemos ser sujeitas a nenhum tipo de exploração comercial, e a nossa vulnerabilidade económica, social, psicológica ou emocional não pode servir o lucro de outros.
Os nossos corpos não servem para o prazer, fetiches e enriquecimento alheios e não somos máquinas reprodutoras. Vemos no sistema de prostituição, na indústria da pornografia, nas barrigas de aluguer e na doação de óvulos formas de exploração capitalista e patriarcal. Hoje em dia, elas são dissimuladas por um discurso de suposto consentimento e escolha individual, que nega qualquer análise macroestrutural da opressão e das relações de poder entre os sexos, e são também mascaradas com falsas imagens de “empoderamento”, de felicidade e satisfação. Nós, mulheres, não somos nem propriedade dos homens, nem do estado nem do capital.
Antirracismo
Entendemos o racismo como um sistema social complexo de hierarquização e domínio racial em que o grupo racial/étnico, que detém o controlo dos meios económicos e/ou o monopólio da violência (que na história moderna têm sido maioritariamente os brancos ocidentais devido à expansão do colonialismo europeu), se apropria dos recursos, da força de trabalho e da história dos outros grupos, reduzindo os seus membros a seres humanos de terceira categoria, ou desumanizando-os por completo. O sistema racista fomentou, ao longo da história, os inúmeros genocídios, a escravatura, a segregação, subsistindo até aos nossos dias quer no seio das relações político-económicas Norte-Sul, quer no interior dos próprios estados, algo que se reflete no tratamento das populações “racializadas”.
A intersecção entre as opressões racistas, classistas e sexistas resulta numa tripla discriminação das mulheres racializadas, pelo que o sexo não pode ser isolado das restantes categorias. A hierarquização racial divide as mulheres em diferentes níveis de opressão patriarcal e capitalista, determinando a existência de diferentes estatutos e valor social para cada uma de nós de acordo com a raça. O sistema racista-capitalista promove ainda a exploração entre mulheres, levada a cabo por aquelas que mais beneficiam do facto de pertencerem à elite racial (no caso português, a população branca) contra as mulheres racializadas (no nosso contexto, considera-se sobretudo as mulheres negras, ciganas e mais recentemente brasileiras e do continente asiático).
Por outro lado, as mulheres racializadas são geralmente sobre-sexualizadas, reduzidas aos seus corpos, relegadas à esfera doméstica e reprodutiva, e estão sobre-representadas nos trabalhos mais precários e socialmente considerados desprestigiantes.
Como tal, a luta contra o racismo e a exploração das mulheres racializadas é uma prioridade do movimento feminista, por não se tratar apenas de uma luta anticapitalista e anti-imperialista, mas também de uma luta que exige sororidade e o reconhecimento da igualdade social entre todas as mulheres. Exigimos que quem nasce em Portugal tenha acesso automático à cidadania portuguesa e defendemos também um modelo de cidadania que não seja totalmente dependente da aprovação e ou reconhecimento jurídico do estado, o que exclui sistematicamente da participação política pessoas migrantes e refugiadas e consequentemente da obtenção de direitos políticos consagrados acessíveis às/aos cidadãs/cidadãos legalmente reconhecidas/os.
Internacionalismo
Apenas a luta internacional das mulheres é capaz de mudar radicalmente a sociedade. Perante a ascensão da direita reacionária e fascista, perante os retrocessos nos direitos das mulheres, das minorias sexuais, étnicas e religiosas, e os ataques coordenados às populações migrantes e refugiadas, acreditamos que apenas uma Internacional Feminista nos libertará verdadeiramente.
O movimento feminista é um movimento internacionalista – pois ele pressupõe a união e solidariedade das mulheres a nível global na luta contra a opressão patriarcal – mas isso não impede que a nível nacional ou local se pensem discursos, estratégias, táticas e prioridades específicas, bem pelo contrário.
Temos de recusar o feminismo imperialista e civilizador – encabeçado pelas organizações internacionais e algumas ONG’s – cujo objetivo é exportar o neoliberalismo político e económico aos países do Sul Global para expandir mercados e promover formas “legítimas” de neocolonialismo- e regularmente de racismo – sobretudo através do apoio ao “desenvolvimento, assegurando, assim, a hegemonia do Norte Global.
Liberdade e diversidade sexual
Reconhecemos que a sexualidade é um eixo fundamental no que se refere à opressão das mulheres, que esta nos tem sido exigida ou como um dever ou como algo do qual nos devemos envergonhar. A opressão baseada no sexo incide de maneira diferente e com uma violência acentuada sobre as mulheres lésbicas – uma vez que estas não servem o desejo masculino – e reflete-se na falta de direitos, na repressão social e ostracização sofrida pelas mulheres lésbicas até aos dias de hoje.
Por outro lado, negamos que a sexualidade seja reduzida a dois campos maniqueístas: o campo conservador e repressivo vs. o campo pornográfico e supostamente “empoderador”. Por isso, a nossa autodeterminação passa também por libertar a sexualidade da normativa patriarcal e heterossexual, por promover relações e vivências sexuais igualitárias e por aceitar a diversidade sexual e afetiva, cujas manifestações não legitimem a violência, a coerção ou as relações desiguais de poder.
Ecofeminismo e justiça climática
Somos conscientes da emergência climática que vivemos e das injustiças provocadas pelo atual modelo económico capitalista e extrativista. O capitalismo depende do trabalho gratuito de milhões de mulheres e de grandes quantidades de recursos naturais. Os interesses do lobby capitalista devastam a vida das mulheres, das comunidades vulneráveis e dos ecossistemas.
Rejeitamos a obsolescência programada, responsável pelo aumento do consumo e dos resíduos tóxicos, e a exploração desenfreada dos recursos naturais das populações do Sul Global (economias periféricas) em prol da produção e consumo do Norte Global.
Revemo-nos nos princípios defendidos pela justiça climática: distribuição justa dos recursos naturais; reconhecimento das populações que habitam os territórios e direito de participação das comunidades locais nas decisões sobre grandes projetos que tenham impacto ambiental nos seus territórios.
Partilhamos da análise do ecofeminismo materialista que vê na exploração da natureza a continuação da exploração das mulheres pelos homens, e que descobre uma ligação entre capitalismo, colonialismo, patriarcado e destruição ambiental e ecológica. Exigimos uma ecojustiça que reconheça e respeite a interdependência entre seres humanos, natureza e todas as formas de vida.
Direito à habitação
A crise da habitação, gerada pela financeirização do setor e aliada a um regime de precariedade laboral, à falta de serviços públicos sociais, e à gentrificação das cidades tem contribuído fortemente para o agravamento das condições de vida das mulheres e dos nossos dependentes. De facto, a luta pela habitação é uma luta amplamente feminizada.
Porque as mulheres, as mães, e sobretudo as mães solteiras, são frequentemente responsabilizadas pelo cuidado da casa e da família e são também elas quem tem estado na linha da frente desta batalha. São frequentemente as mulheres quem se organiza para parar despejos, quem se mobiliza para criar melhores condições de habitabilidade, quem toma a decisão e tem coragem para ocupar casas há anos desabitadas. Habitar com dignidade é um direito e, como tal, a habitação deve ser um bem público e gratuito.
Autodefesa feminista
Os nossos corpos são o primeiro locus de agressão do sistema patriarcal e é pelo controlo e tortura dos mesmos que opera o terrorismo machista. Consideramos que a violência machista tem de ser encarada como uma forma de terrorismo contra as mulheres, uma vez que ela é uma instituição de controlo patriarcal, que através das suas diferentes manifestações, graus e representações, define a vida de todas as mulheres utilizando o medo e o terror constantes, ou a iminência dos mesmos, para nos controlar, moldar e reprimir.
Como tal, é imperativo que nós mulheres criemos redes de auto-defesa e de segurança, e que nos fortaleçamos psicológica e fisicamente, sendo o exercício físico e a prática de atividades de combate uma forma de garantir a nossa sobrevivência e bem-estar.
Perante o carácter patriarcal dos corpos policiais e do sistema de justiça, é-nos impossível confiar totalmente nestas instituições enquanto salvaguarda da nossa integridade física e moral, o que nos impele a reclamarmos a autodefesa feminista como uma reação legítima a salutar. Temos de reclamar os nosso corpos como sujeitos ativos de resistência e transformar a raiva não em perdão, mas sim numa força impulsionadora de destruição do sistema vigente.
A auto-defesa organizada das mulheres – que não se trata de violência gratuita – é essencial para a construção da consciência feminista e da resistência das mulheres. É necessário que recuperemos o mote “ações não palavras” das sufragistas (deeds not words) e que aprendamos, por exemplo, com a fúria das mulheres mexicanas, com as aldeias de mulheres da Índia onde se pratica a auto-defesa e com a coragem das mulheres curdas de Rojava.
Intergeracionalidade
Defendemos uma prática feminista intergeracional que se baseie na continuação da luta pela nossa libertação empreendida por outras mulheres nas décadas passadas. Somos herdeiras dos direitos conquistados pelas nossas predecessoras, e temos, assim, a responsabilidade de garantir a preservação dos mesmos e de prosseguir com a agenda feminista que visa acabar com todo o tipo de opressões que continuam a negar a plena igualdade de direitos e liberdades às mulheres por todo o mundo. Neste sentido, consideramos essencial que as mulheres feministas de diferentes gerações trabalhem em conjunto por objetivos comuns, através do reconhecimento mútuo.
Apelamos também à intergeracionalidade como reconhecimento das opressões específicas com base no sexo derivadas da passagem por cada uma das diferentes etapas da vida. Consideramos imperativo atender à realidade das mulheres partindo de uma perspectiva etária para poder fazer frente aos riscos e opressões associados à sua condição sexual, especialmente durante a velhice. Entre elas ganham especial expressão a invisibilidade e rejeição social das mulheres após ultrapassar o pico da juventude, os problemas de saúde associados à sua condição reprodutiva ou a vulnerabilidade social em idades avançadas — que deriva de aspectos como a precariedade laboral e/ou dependência da relação conjugal, a maior taxa de esperança de vida ou a carga doméstica familiar que têm assumir, entre outros aspectos ―.